A pandemia de Covid-19 completa dois anos nesta sexta-feira (11), e o sobe e desce das curvas de casos e óbitos ao longo deste período teve dois fatores como protagonistas: as variantes e as vacinas. Se, de um lado, esforços para desenvolver e aplicar imunizantes atuaram no controle da mortalidade e na circulação do SARS-CoV-2, do outro, a própria natureza dos vírus de evoluir, adquirir maior poder de transmissão e escapar da imunidade fez com que as infecções retomassem o fôlego em diversos momentos.
Moldada por essas forças, a pandemia acumula, em termos globais, quase 450 milhões de casos e mais de 6 milhões de mortes, além de 10 bilhões de doses de vacinas aplicadas e 4,3 bilhões de pessoas com duas doses ou dose única, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Integrante do Observatório Covid-19, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Raphael Guimarães explica que, ao se multiplicar, qualquer vírus pode evoluir para uma versão mais eficiente de si mesmo, infectando hospedeiros com mais facilidade. Quando a mutação dá ao vírus um poder de transmissão consideravelmente maior que sua versão anterior, nasce uma variante de preocupação.
“O que a gente vive dentro de uma pandemia é uma guerra em que a gente está tentando sobreviver, e o vírus também está tentando”, resume Guimarães. “Cada vez que a gente dá a ele a chance de circular de forma mais livre e tentar se adaptar a um ambiente mais inóspito, o que ele está fazendo é tentar alterar sua estrutura para sobreviver.”
O presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, Alberto Chebabo, acrescenta que impedir que um vírus sofra mutações ao se replicar é impossível, porque isso é da própria natureza desses micro-organismos. Apesar disso, é possível, sim, dificultar esse processo, criando um ambiente com menos brechas para ele circular. E é aí que as vacinas cumprem outro papel importante.
“A gente pode reduzir esse risco aumentando a cobertura vacinal no mundo inteiro. A Ômicron apareceu na África, que é o continente com menor cobertura vacinal”, lembra ele. Enquanto Europa, Américas e Ásia já têm mais de 60% da população com duas doses ou dose única, o percentual na África é de 11%. “Se a gente conseguir equalizar a cobertura vacinal nos diferentes países, a gente tem um menor risco de ter uma variante aparecendo dessa forma”, diz Chebabo.
É unânime entre os pesquisadores que, se as ondas de contágio podem ser relacionadas à evolução das variantes, o controle das curvas de casos e óbitos se deu com a vacinação. A diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Flávia Bravo, afirma que é inegável o papel das vacinas na queda da mortalidade por covid-19 ao longo destes dois anos.
“No início, vacinaram-se os idosos mais velhos, para depois ir descendo por idade e para pacientes com comorbidades. E, se olhar no miúdo a interferência da vacina no número de mortes, fica evidente, a partir da vacinação desse grupo das maiores vítimas, uma queda coincidindo com o aumento da cobertura”, avalia ela, que também resume a pressão das variantes no sentido contrário, aumentando os casos: “Começamos no Brasil com a cepa original, depois a Gama começou a predominar, foi substituída pela Delta, veio a Ômicron, e esse balanço nas nossas curvas foi acompanhando justamente essas novas variantes que foram se espalhando pelo mundo.”
A pediatra considera que problemas na disponibilidade de vacinas no início da imunização e a circulação de variantes também levaram o Brasil a ser um dos países mais afetados pela pandemia de covid-19, com mais de 650 mil mortes causadas pela doença, o segundo maior número de vítimas do mundo, e uma taxa de 306 mortes a cada 100 mil habitantes, a segunda maior proporção entre os dez países que mais tiveram vítimas da doença.
“Se a vacinação tivesse começado mais cedo e com uma oferta de doses maior desde o início, com certeza o panorama que a gente vivenciou teria sido diferente. Mas, ainda que tenhamos atrasado o início e a disponibilidade de doses também tenha demorado, chegamos a coberturas tão boas ou até melhores que muitos países, inclusive com esquema completo”, afirma a diretora da SBIm.
Variantes de preocupação
Desde que o coronavírus original começou a se espalhar, a OMS classificou cinco novas cepas como variantes de preocupação. Mais sete chegaram a ser apontadas como variantes sob monitoramento ou variantes de interesse, mas não reuniram as condições necessárias para justificarem o mesmo nível de alerta. Para que as mutações genéticas do vírus sejam consideradas de preocupação, elas devem ter características perigosas, como maior transmissibilidade, maior virulência, mudanças na apresentação clínica da covid-19 ou diminuição da eficácia das medidas preventivas.
O padrão de batizar as variantes com letras do alfabeto grego foi uma alternativa adotada pela OMS para evitar que continuassem sendo identificadas por seu local de origem, como chegou a acontecer com a Alfa, a que veículos de comunicação se referiam frequentemente como variante britânica. Associar uma variante a um país ou região pode gerar discriminação e estigmas, justifica a organização, que acrescenta que essa nomenclatura também simplifica a comunicação com o público e é fácil de pronunciar em vários idiomas.
Virologista e coordenador da Vigilância Genômica de Viroses Emergentes da Fiocruz Amazônia, Felipe Naveca coordenou o trabalho que confirmou a existência da variante Gama, a que teve maior impacto na mortalidade da covid-19 no Brasil. Ele explica que, ao longo do tempo, o coronavírus adquiriu maior transmissibilidade ao acumular mutações que permitiram o escape de anticorpos, aumentaram a replicação e facilitaram a entrada nas células.
Com essas vantagens, as variantes Alfa e Beta causaram aumentos de casos e óbitos em outros países, mas não chegaram a se disseminar a ponto de mudar o cenário epidemiológico no Brasil. Por outro lado, o pior momento da pandemia no país, nos primeiros quatro meses do ano passado, está diretamente ligado à variante Gama.
Gama
“A Gama foi o nosso grande terror, porque foi o surgimento de uma variante de preocupação aqui antes que a gente tivesse iniciado a vacinação. Até a gente conseguir avançar, ela já tinha se espalhado”, afirmou Felipe Naveca.
A disseminação da variante Gama causou colapso no sistema de saúde do Amazonas entre o fim de dezembro e janeiro de 2021. A sua disseminação pelo país levou à lotação das unidades de terapia intensiva em praticamente todos os estados ao mesmo tempo. O cenário continuou a se agravar até março e abril de 2021, quando a média móvel de mortes por covid-19 teve picos de mais de 3 mil vítimas diárias. Em 17 de março, a Fiocruz classificou a situação como o maior colapso sanitário e hospitalar da história do Brasil.
Iniciada em 17 de janeiro, a vacinação no Brasil ainda estava em estágio inicial durante a disseminação da variante Gama, e, quando o pico de óbitos foi atingido, menos de 15% da população tinha recebido a primeira dose. À medida que a vacinação dos grupos prioritários avançava, porém, a média móvel de mortes começou a cair no Brasil a partir de maio de 2021, e instituições como a Fiocruz chegaram a apontar uma queda na média de idade das vítimas de covid-19, uma vez que os mais velhos tinham cobertura vacinal maior que adultos e jovens.
Delta
Enquanto a curva da variante Gama descia no Brasil em maio, a variante Delta mostrava seu poder de transmissão na Índia desde abril e levava a outra situação de colapso que alarmava autoridades de saúde internacionais. Segundo dados da OMS, mais de 100 mil indianos morreram de covid-19 somente em maio, e a organização declarou a Delta uma variante de preocupação no dia 11 daquele mês.
A variante Delta se espalhou e diversos países como Indonésia, Estados Unidos e México tiveram altas na mortalidade entre julho e agosto. No Brasil, a vacinação dos grupos de risco e a recente onda da variante Gama produziram o que os pesquisadores chamam de imunidade híbrida.
“É a imunidade das vacinas somada à imunidade da infecção natural”, explica o virologista. “O problema da imunidade natural é que milhares de pessoas morreram. Não é algo que a gente possa pensar como uma estratégia, mas aconteceu. A gente não viu nem de perto o que aconteceu com a Gama acontecer com a Delta.”
Ômicron
Apesar disso, a variante Delta substituiu a Gama como a principal causadora dos casos de covid-19 no país ao longo do segundo semestre de 2021, e manteve esse posto até que fosse derrubada pela Ômicron. A última variante de preocupação catalogada, até então, teve seus primeiros casos identificados no Sul da África em novembro de 2021, e, a partir da segunda quinzena de dezembro, países de todos os continentes registraram um crescimento de casos em velocidade sem precedentes. Ao longo de todo o mês de janeiro de 2022, o mundo registrou mais de 20 milhões de casos de covid-19 por semana, enquanto o recorde anterior era de quase 5,7 milhões por semana, segundo a OMS.
Entre todas as variantes, a Ômicron é a que acumula mais mutações, garantindo uma capacidade de contágio muito maior que as demais. Além disso, explica Fernando Naveca, também é a mais capaz de escapar das defesas imunológicas, causando reinfecção e infectando pessoas vacinadas, ainda que sem gravidade em grande parte das vezes. Diferentemente da Gama, a variante supertransmissível encontrou um cenário de vacinação mais ampla, com mais de 60% da população brasileira com duas doses e dose única, e grupos de risco já com acesso à dose de reforço.
Antes da variante Ômicron, o recorde na média móvel de novos casos de covid-19 no Brasil era de 77 mil por dia. Entre 20 de janeiro e 20 de fevereiro de 2022, porém, o país repetiu dia após dia uma média móvel de mais de 100 mil casos diários, chegando a quase 190 mil casos por dia no início de fevereiro, segundo dados do painel Monitora Covid-19, da Fiocruz. Cidades como o Rio de Janeiro registraram, somente no mês de janeiro de 2022, mais casos de covid-19 que em todo o ano de 2021, quando as variantes Gama e Delta eram as dominantes.
Ainda que o número de mortes tenha subido com o pico da variante Ômicron, a média móvel de vítimas não superou os mil óbitos diários nenhuma vez em 2022, enquanto, em 2021, todos os dias entre 24 de janeiro e 30 de julho tiveram média de mais de mil mortes. Essa diferença tem relação direta com a cobertura vacinal atingida pelo país, que já tem 73% da população com duas doses ou dose única e 31% com dose de reforço.
“Felizmente, tivemos um pico absurdo de casos que não se refletiu em um número tão alto de casos graves. Então, a não ser que surja outra variante, a gente deve viver um período mais tranquilo, porque tivemos muita vacinação e um pico grande da Ômicron. Isso deve nos ajudar a ter uma queda de casos”, espera o pesquisador.
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Fonte: Agência Brasil