
De quando estive lendo “Carta ao pai”, de Franz Kafka.
Estou em um período árduo de trabalho. Não tenho dias livres, ando dormindo pouco, os projetos pessoais estão estagnados. Dia Rio, dia São Paulo, dia Belo Horizonte. Minha família e eu não conversamos como deveríamos. Há conflitos importantes que não serão resolvidos — porque eu não tenho disponibilidade. Moro sozinho. Não tenho parentes por perto. Minha saúde, vez ou outra, ameaça vacilar. Meus melhores amigos e eu quase não nos
vemos…
Não se engane, leitor: eu estou feliz. Acredito que sim. Mas estou exausto. A qualquer momento posso colapsar — já o fiz antes.
Na última semana, diante da possibilidade de romper-me de mim mesmo, entrei em meus miolos e me perguntei: o que me ancora à realidade palpável? O que me impede, num anuviar delicado da mente, de simplesmente desistir de ser quem sou e deixar-me desaparecer? Quem me impede de me deixar ir nesta confusão que é o reflexo do eu? Ando tão cansado que estou quase doente. Aqui, no limite do quase.
Estou lendo Franz Kafka.
E que agonia é mergulhar em sua “Carta ao pai” e reconhecer, nas palavras do autor, um desespero feito de passado, trauma, infância, abandono. A carta te encurrala. Você lê e, de repente, está dentro da casa da família Kafka, vendo-o ser humilhado pelo pai. Do medo à pena, um turbilhão de sentimentos atravessa o leitor — me atravessa — e a angústia é tamanha que, no sufoco, emerge a máxima: que situação. Só Deus!
Sempre achei curiosa essa perseguição humana ao sobrenatural — não entrarei nessa seara —, mas me intriga termos herdado das tradições antigas o apelo a algo que talvez nem exista, só para clamar por socorro. Só Deus! Só Deus para salvar o Kafka. Só Deus para conter o desvio do sofrimento.
Mas… Deus responde às minhas primeiras perguntas?
Na minha cabeça, Carta ao pai é o Deus — ou um dos deuses — de Kafka. A carta, a escrita, a elaboração, as camadas invadidas, o corpo virado do avesso num dilema íntimo, o passado e o presente se entrelaçando, a idade como um rio borbulhante. O drama de escrever e uma quase-beleza na potência — falo potência — de resolver, ainda que parcialmente, o conflito com o pai e com o tempo.
Carta ao pai parece ter sido grito, apelo, busca por tranquilidade. Uma viagem em si e no outro. Uma tentativa de paz — talvez nunca alcançada, mas desejada. É desabafo, briga, pedido de socorro. Mas também um acalanto. Kafka faz carinho sobre o próprio corpo enquanto briga com a própria alma. É o começo, o meio, mas não é o fim: um círculo que morde, se recupera, morde, se recupera, se salva.
Isso não pode ser outra coisa. É Deus.
Retornemos ao meu trafegar na confusão. O leitor se lembra do colapso. É verdade que estou quase sempre com as pontas dos dedos tocando o colapso. Sou eu meu próprio fim. Nenhum outro. Eu mesmo ponho o meu eu em risco, e só não me perco de mim porque… sou eu.
Se tenho tudo para ir, como é que vou ficando?
Digo: você não viu o Deus de Kafka tentando fazer milagres ali, na peleja da escrita?
Eu leio. Fico porque leio. Descubro-me. Elaboro-me. Encontro-me com um Deus que é ego e é o outro, numa língua que não é minha — e que às vezes é. Deixo-me atravessar pelo que escuto dos clássicos e me refaço conforme absorvo, esponja, os conflitos que acompanho sob o teto de vidro da leitura.
Conto com a sorte e o privilégio divino-divino, que a literatura e o destino — deuses um só — me deram: o de trabalhar com a leitura, de escrever leitura, de acordar e dormir pensando literatura, de gostar disso.
Minha vida só faz sentido porque eu tenho a leitura — e ela me tem. Inteiro.
Os livros da minha estante, os que escrevo, os meus leitores, os textos menores, as notas, os posfácios: tudo que toco na leitura me tem no íntimo, me vê nu.
Nus, estamos vulneráveis. E assim, frágeis, choramos. Eu choro.
Quando choro, clamo.
E ela me acode.
A leitura. A escrita. A literatura.
De onde vem o meu socorro?
O meu socorro vem de ti.
Escrito num avião
Patrick Torres – médico e escritor