
Autor de clássicos contemporâneos do cinema nacional como Aquarius e Bacurau, o cineasta Kleber Mendonça Filho nos brinda mais uma vez como um filmaço, O Agente Secreto. Depois do estrondoso sucesso de Ainda estou aqui, película de Walter Salles que trouxe para o Brasil o Oscar de melhor filme internacional, a cinematografia nacional volta a abordar o tema da Ditadura Militar. Todavia, como não poderia deixar de ser, a obra de Kleber Mendonça traz marcas autorais que conferem ao filme em apreço uma abordagem sensível e intimista sobre o fenômeno ditatorial no Brasil.
O enredo segue a história de Marcelo, ex-professor universitário que busca recomeçar sua vida em Recife de fins dos anos 1970. Interpretado magistralmente por Wagner Moura, Marcelo tem um passado entremeado por mistérios, o que evidencia-se em seu caráter circunspecto, sorumbático, irrequieto. A narrativa construída pelo diretor pernambucano não oferece nenhuma resposta pronta para as questões apresentadas no início do filme, ao contrário, o que temos são fragmentos de memória apresentados ao longo da película. Cabe ao leitor capturar estes fragmentos, apreendê-los e conjugá-los para reconstituir o passado do protagonista que, ao fim e ao cabo, continuará envolto em um nevoeiro de incertezas.
Essa discussão sobre memória, que afigura-se como aspecto central do filme, é salientada através dos saltos temporais que conduzem o espectador ao presente, onde duas estagiárias de uma universidade examinam documentos em que emergem vítimas da ditadura como Marcelo, nome falso utilizado por Armando. São fitas cassetes que registraram depoimentos da época, inclusive do protagonista, mas também jornais do período. A personagem Flavia, interpretada por Laura Lufési, traduz esse sentimento contraditório, frequentemente angustiante, de quem pretende conhecer o passado na sua inteireza, ambição confrontada com o caráter necessariamente fragmentário da experiência histórica.
É possível que alguns espectadores estranhem esta incompletude transmitida pelo filme. Todavia, esta ausência de resolução constitui o cerne da estrutura narrativa desenvolvida por Kleber Mendonça Filho. Se o longa é incompleto é porque a experiência histórica e a memória construída sobre ela é sempre incompleta, inacabada, inconclusa, mas nunca incognoscível. A partir desta escolha narrativa, emergem temáticas pouco discutidas quando consideramos a filmografia sobre a Ditadura Militar brasileira.
Entre estes temas inabituais, sobressaem questões como a relação entre o empresariado e a ditadura, problemática que vem adquirindo relevo nas últimas décadas, a despeito de estudos clássicos sobre o assunto, como o livro “1964: A conquista do Estado”, publicado em 1981 pelo historiador e cientista político René Armand Dreifuss. O empresário Ghirotti, interpretado por Luciano Chirolli, representa o arquétipo do executivo que parasita o Estado para crescer no mundo corporativo. O ataque à pesquisa científica na universidade, outra faceta instigante da obra, demonstra que a investida contra o conhecimento, sobretudo, aquele não alinhado com os interesses empresariais que nortearam o regime militar, é uma constante na história do Brasil republicano.
A violência foi outro tema sobejamente trabalhado no filme. Não trata-se da violência em nível macro, mas das inúmeras micro-violências que atravessam a vida das personagens. A violência cotidiana noticiada pela imprensa, mais de 90 pessoas mortas durante o carnaval de Recife; a violência sempre iminente nas cenas em que aparecem agentes policiais; a banalização de corpos em porta-malas, necrotérios ou abandonados ao relento. Essas micro-violências só adquirem sentido no interior de uma engrenagem maior que não é diretamente explorada no filme, mas que o expectador capta quando a câmera foca nos retratos do ditador Ernesto Geisel afixados nas paredes de repartições públicas. A referência é pertinente na medida em que documentos da CIA, recentemente liberados pelo governo dos Estados Unidos, apontaram que as execuções sumárias de opositores da ditadura continuaram no governo Geisel, contando, inclusive, com sua expressa anuência.
Não poderia deixar de citar o deslocamento geográfico realizado pelo diretor, onde Recife, e não Rio de Janeiro ou São Paulo, ocupa o principal cenário do filme. Confronta-se, assim, o lugar comum de que a repressão promovida pela ditadura não atingiu o Nordeste, que teria se mantido distante dos conflitos que ocorriam no Centro-Sul do país. Nada mais equivocado, sobretudo, quando lembramos que o Nordeste constituiu o foco das preocupações parlamentares no período imediatamente anterior ao Golpe Civil-Militar de 1964. Execuções, tortura e desaparecimentos forçados também fizeram parte da história dos Estados nordestinos durante a vigência da ditadura.
Em suma, O Agente Secreto nos faz mergulhar em um Brasil que ainda é o país em que vivemos. Por isso, saímos da sessão com sentimentos ambivalentes: angustia e indignação, melancolia e êxtase, desolação e esperança. Independente dos prêmios que já recebeu, e que ainda receberá, o filme de Kleber Mendonça Filho já cumpriu uma missão social inestimável, revolver nosso recente passado autoritário. Como nos alertou Eduardo Galeano, “não existe o tapete que possa ocultar a sujeira da memória”.
Por Ramsés Pinheiro – Historiador
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