7 de junho de 2025

Você realmente controla o que pensa? Uma leitura sociológica de “Rede de Ódio” e o poder invisível da manipulação digital

Robert Bandeira

Sociólogo
Publicado há 3 horas

Compartilhe:


[1] Este texto é apenas um ensaio-síntese, este tema é muito complexo.

Rede de Ódio (Foto: Reprodução)

Em uma era marcada pela hiperconectividade e pelo fluxo ininterrupto de dados, muitos de nós acreditamos estar mais bem informados do que nunca. O acesso constante a conteúdos variados — notícias, análises, comentários e vídeos — transmite a impressão de uma cidadania ativa, crítica e vigilante. Mas e se essa sensação de autonomia for, em si mesma, parte de uma grande ilusão? E se aquilo que pensamos, sentimos e acreditamos estiver sendo moldado de maneira silenciosa, quase imperceptível, por forças que operam longe do nosso campo de visão?

O filme “Rede de Ódio” (2020), dirigido por Jan Komasa, nos lança violentamente dentro dessa pergunta. A trama acompanha um jovem expulso da universidade que encontra, nas sombras da internet, um caminho de ascensão social por meio da manipulação digital. Contratado por uma agência especializada em campanhas de difamação, ele passa a orquestrar ataques virtuais, inflar discursos de ódio e interferir em dinâmicas políticas, sociais e afetivas — tudo com o aval e a demanda de quem paga. O que está em jogo ali não é apenas a reputação de indivíduos, mas a própria estrutura do debate público, que se vê corroída por campanhas que simulam espontaneidade, mas são meticulosamente fabricadas, orquestradas!

A potência desse filme está em revelar que a desinformação não é mais um “desvio” do sistema — ela é o próprio sistema. O jovem protagonista do filme não é uma exceção. Ele é o operador de uma engrenagem muito maior, sustentada por algoritmos que premiam o engajamento, a viralização e, sobretudo, a polarização. As redes sociais tornaram-se o novo campo onde se decide o que será considerado verdade, quem será ouvido e o que será descartado. E, como já alertava Pierre Bourdieu, isso não ocorre num espaço neutro, mas sim num campo de disputas, onde certos discursos ganham força porque têm poder social acumulado por trás — financeiro, político e simbólico.

Em textos como “Sobre a Televisão” e “A Opinião Pública Não Existe”, Bourdieu já apontava o risco de tomarmos como espontâneo aquilo que é resultado de estratégias de visibilidade. Quando um tema aparece reiteradamente na mídia, quando determinadas imagens são reproduzidas à exaustão, quando certos personagens são alçados à condição de “porta-vozes da sociedade”, é preciso perguntar: quem tem interesse em que isso aconteça? O que antes se dava por meio dos veículos tradicionais — jornais, revistas, TV — hoje acontece em escala muito mais veloz, automatizada e personalizada. Os algoritmos não apenas filtram o que vemos, mas também retroalimentam nossas crenças, oferecendo um ambiente feito sob medida para reafirmar o que já pensamos e rejeitar visões dissonantes.

É nesse ponto que a pergunta “Você realmente controla o que pensa?” deixa de ser apenas retórica e se transforma num problema político. Se nossos sentimentos de indignação, medo, desejo ou repulsa estão sendo continuamente moldados por estímulos direcionados, então nossa autonomia crítica está em risco. O filme “Redes de Ódio” nos mostra que basta um operador técnico com ambição, ressentimento e alguma sofisticação para incendiar as relações sociais — e mais do que isso: para reorganizá-las a partir do ódio.

Mas o filme também revela algo ainda mais inquietante: o sucesso desse tipo de manipulação não depende apenas da malícia de quem manipula. Ele depende da disposição da sociedade em consumir esse tipo de conteúdo, em acreditar no que confirma seus preconceitos, em rejeitar a dúvida, em celebrar o ataque. A estrutura do ódio não é artificial! Ela é alimentada cotidianamente, por milhares de pessoas comuns, como eu e você.

A televisão, com sua grade linear e sua agenda centralizada, já operava como filtro ideológico. Mas a lógica algorítmica das redes sociais a ultrapassa em um aspecto importante: ela aprende conosco. Cada clique, curtida ou compartilhamento se torna uma pista sobre quem somos — e uma ferramenta para nos manter cada vez mais presos em nossas bolhas. O problema, portanto, não é só técnico. É social, simbólico e político.

“Redes de Ódio” não é apenas um filme sobre manipulação digital. É um espelho sombrio da nossa sociedade. Mostra o quanto estamos vulneráveis, não apenas porque há profissionais treinados para nos enganar, mas porque a própria arquitetura das plataformas favorece a mentira emocional em detrimento da verdade complexa. Mostra que a opinião pública é um terreno em disputa — e que, muitas vezes, estamos lutando com as armas do inimigo sem sequer saber que estamos em guerra.

Retomar Bourdieu neste contexto é lembrar que o que está em jogo não é apenas “informar corretamente” o público, mas proteger a própria possibilidade de um pensamento crítico e autônomo. Pensar criticamente, hoje, é um ato de resistência. E resistir exige vigilância, educação crítica, e sobretudo, consciência de que nossas crenças não são dados naturais, mas produtos de relações de poder.

No final das contas, a pergunta que resta é mais incômoda do que confortável: quem está realmente pensando por você neste exato momento? Para pensar criticamente e agir de forma mais informada, é essencial questionar a origem das informações, diversificar as fontes e evitar o compartilhamento impulsivo de conteúdos. Desconfie de mensagens alarmistas ou emocionais e cultive o hábito da dúvida, lembrando que refletir com autonomia exige tempo, escuta e disposição para rever certezas.

Robert Bandeira – Doutor em Sociologia

Leia também: