
Há 80 anos, os Aliados derrotaram as forças do Eixo, encerrando oficialmente a Segunda Guerra Mundial. O impacto humano foi absurdo. Não me refiro apenas aos mais de 50 milhões de indivíduos que pereceram no conflito, o que já é estarrecedor, mas também àquilo que o historiador britânico Eric J. Hobsbawm definiu como “a liberação do potencial latente de crueldade e violência no ser humano”, o que foi evidenciado em episódios como o Holocausto e o bombardeio nuclear em Hiroshima e Nagasaki.
O Brasil manteve uma posição de neutralidade na guerra até 1942, quando manifestações de rua indignadas com o torpedeamento de navios mercantes brasileiros por submarinos germânicos, somada à pressão dos Estados Unidos, levou o governo de Getúlio Vargas a decretar estado de beligerância, em 22 de agosto, e alguns dias depois, em 31 de agosto, estado de guerra contra a Alemanha e a Itália. A Força Expedicionária Brasileira (FEB), criada para intervir no teatro de guerra na Europa, foi constituída pela Portaria Ministerial nº 4.744, em 9 de agosto de 1943, todavia, o primeiro contingente brasileiro só embarcou para a Itália em 30 de junho do ano seguinte. Até 8 de fevereiro de 1945, um efetivo de 25.334 homens e mulheres da FEB desembarcou na península itálica.
Em 2001, a Biblioteca do Exército Editora publicou a “História Oral do Exército da Segunda Guerra Mundial”, obra dividida em oito tomos que reuniu 182 depoimentos de ex-combatentes da FEB. A despeito do caráter institucional deste projeto, e das particularidades que atravessam a produção da memória, os relatos dos febianos constituem uma possibilidade de acessar experiências que não aparecem nos documentos oficiais sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, sobretudo, no que diz respeito ao cotidiano no front. Por isso, escolhi algumas destas memórias para discutir temáticas que fizeram parte do dia a dia dos pracinhas brasileiros.
Ao rememorar a experiência da guerra, o fortalezense Moacir Véras (Tomo 1), então Oficial de Manutenção e Auxiliar da Linha de Fogo da 2ª Bateria do III Grupo de Obuses da FEB, trouxe uma questão que contrasta com o discurso oficial: o medo. Durante a campanha na Itália, Véras disse que fumou pela primeira vez para afastar o medo, acrescentando que “dizer que ninguém tem medo é mentira, têm-se medo sim”. Outro cearense, Alexandrino Corrêa Lima, Oficial de Transmissões (Comunicações) do 6º Regimento de Infantaria (RI) da FEB, relembrou que durante um bombardeio de artilharia, no Vale do Sercchio, entrou no mato, se abaixou e sentiu medo, um “frio na barriga danado” (Tomo 2).
Relatar situações de medo, não constitui nenhum demérito para estes ex-combatentes, ao contrário, evidencia a humanidade destes indivíduos, dimensão que termina sendo invisibilizada no discurso oficial que apresenta o soldado da FEB como um ser inquebrantável. O carioca Carlos Augusto de Oliveira Lima, Comandante de Pelotão da 1ª Companhia do 1º RI, expressou esse sentimento quando pontuou que “nós somos humanos e, como tal, eu tinha vontade de sentar no chão e chorar, mas o que o tenente faz, o soldado faz mais” (Tomo 2). Por outro lado, muitos veteranos ressignificaram este medo ao situá-lo como impulso para uma resposta positiva. Oswaldo Matuk, sargento fuzileiro no 11º RI, por exemplo, manifestou-se neste sentido ao ponderar que “ninguém pode dizer que não tem medo, é muito natural”, todavia, acrescentou que “a reação é positiva, provoca um estado de alerta e agressividade” (Tomo 3). Por sua vez, Moacir Véras afirmou que “há muito heroísmo que é reação ao medo” (Tomo 1).
Apesar das dificuldades no front, Véras asseverou que o soldado brasileiro tinha uma facilidade de adaptação que foi muito importante no decorrer da guerra. A estes respeito, o já citado Alexandrino Corrêa Lima lembrou que “enquanto a tropa americana usava o seu combat-boot, apertado, e o galochão por cima, nós tirávamos o coturno e usávamos apenas o galochão acolchoado com palha de trigo. Com isso, a tropa brasileira teve menos pé de trincheira do que o americano, que já era acostumado com o clima frio”. O pé de trincheira é uma forma de lesão provocada pela exposição prolongada ao frio, problema contornado pelo “jeitinho” brasileiro. Oswaldo Matuk também ressaltou a capacidade de adaptação dos soldados da FEB à “guerra de montanha”, para a qual não haviam recebido treinamento algum, “éramos pé de poeira mesmo”. Além da experiência concreta de combate nas montanhas, Newton La Scaléia, 3ª sargento do 1º Batalhão do 6º RI, rememorou que os brasileiros tiveram “grande ajuda dos partisans”, guerrilheiros da resistência italiana, para amoldar-se à luta naquele território íngreme (Tomo 3).
Outra dimensão da guerra recorrente na memória dos ex-combatentes, foi a camaradagem e a solidariedade. Sobre este ponto, o manauara Silas de Aguiar Munguba, 3º sargento, do I Batalhão de Infantaria do 1º RI, lembrou que “padecíamos os mesmos sofrimentos, as mesmas angústias, as mesmas perplexidades, as mesmas decepções. Um dependia do outro; criava-se entre nós um sentimento de amizade tão grande que a gente ainda guarda, não esquece e é impossível descrever” (Tomo 2). Para além da dura realidade no front, esse companheirismo também aparecia em momentos cotidianos de alegria, tal como relembrou o piauiense Antonio Carlos Poti, 1º Tenente R/2, Comandante do 3º Pelotão / 7a Companhia / III Batalhão do 6º RI, “no meu pelotão havia um soldado, o ‘gaúcho sanfoneiro’, como era conhecido que, com outros cantores improvisados, oferecia-nos belas canções do repertório brasileiro e outras arranjadas no front” (Tomo 2).
A despeito do treinamento insuficiente e inadequado, aspecto evidenciado pelos ex-combatentes em suas memórias e também no trabalho de historiadores como Dennison de Oliveira, a FEB cumpriu um papel importante na campanha dos Aliados na Itália. A tomada de Monte Castelo, em 21 de fevereiro de 1945, tornou-se o maior símbolo da trajetória febiana na península itálica. Todavia, a rendição da 148º Divisão de Infantaria alemã (com quase 15 mil soldados, incluindo 2 generais e 850 oficiais) para o 6º Regimento de Infantaria da FEB, na cidade de Fornovo, em 29 de abril de 1945, não deixa dúvidas sobre o desempenho positivo das tropas brasileiras na guerra.
O combate ao fascismo na Europa não era compatível com a manutenção de um regime autoritário em solo nacional, fator que contribuiu para acelerar a crise e a posterior queda da ditadura estadonovista de Vargas, em outubro de 1945.
Ramsés Pinheiro – Historiador
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