
A Câmara dos Deputados está prestes a pautar um projeto que concede anistia aos condenados pelos ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023. Segundo a reportagem de Pedro Figeiredo, publicada no portal g1 em 3 de julho de 2025, “o projeto da anistia pode aparecer na pauta da Câmara antes mesmo do recesso”, e lideranças da Casa têm se articulado para viabilizar a votação com apoio da oposição bolsonarista. A proposta, construída por meio de uma versão alternativa que exclui os chamados “autores intelectuais”, não representa um movimento isolado, mas um gesto político com implicações profundas na disputa simbólica pela memória do que foi aquele dia: um ataque frontal às instituições democráticas brasileiras.
A questão que se impõe, portanto, não é apenas jurídica, mas sociológica: quem deseja essa anistia? E por que esse desejo sobrevive, mesmo diante da clara condenação social dos atos de 8 de janeiro? Para responder, é preciso considerar simultaneamente os dados que vêm de dentro do Congresso e os que emergem da sociedade.
Uma pesquisa recente realizada pela Quaest com 203 deputados federais – representando 40% da composição da Câmara – revela que a maioria dos parlamentares de direita e de oposição ao governo Lula acredita que o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), colocará o projeto de anistia em votação ainda este semestre. Essa convicção é especialmente forte entre os deputados que se identificam ideologicamente como conservadores e que têm maior proximidade com o eleitorado bolsonarista. Os dados indicam que o apoio ao projeto está profundamente associado ao pertencimento ideológico à direita e ao campo da oposição, além de uma afinidade com segmentos evangélicos e defensores da ideia de que o Supremo Tribunal Federal tem “invadido competências” do Legislativo. A lógica que sustenta esse apoio não é técnica, tampouco constitucional: é simbólica. Trata-se de uma tentativa de reabilitar, no campo da narrativa pública, figuras e movimentos associados ao bolsonarismo e à radicalização antissistêmica, com vistas a manter viva uma base eleitoral que se alimenta do ressentimento e do antipetismo.
No entanto, quando olhamos para os dados da sociedade, o abismo entre representantes e representados se torna evidente. A mesma Quaest que consultou os parlamentares também entrevistou cidadãos brasileiros sobre os eventos de 8 de janeiro. O resultado é contundente: 71% da população desaprova as invasões às sedes dos Três Poderes. O índice de rejeição é majoritário em todas as faixas etárias, níveis de renda, escolaridade e regiões do país. Mesmo entre os eleitores de Bolsonaro no segundo turno de 2022, apenas uma minoria endossa os atos. Além disso, 61% da população atribuem algum grau de responsabilidade ao ex-presidente pelos acontecimentos daquele dia. Esses dados revelam que o apelo à anistia é uma demanda restrita, sustentada por um grupo político específico e por uma minoria da sociedade que ainda alimenta a tese de que houve fraude ou injustiça na derrota eleitoral de 2022.
O que vemos, portanto, é uma desconexão entre o que deseja a maioria da sociedade e o que uma parte significativa da elite parlamentar está disposta a pactuar. A anistia aparece como uma peça estratégica dentro de um jogo político que tenta reescrever a história recente do país. Mais do que um gesto de clemência, ela é uma aposta na reabilitação simbólica de um projeto autoritário que não conseguiu se sustentar eleitoralmente, mas que segue operando nos subterrâneos do sistema político-institucional. O Parlamento, que deveria zelar pela democracia, é convertido em arena para reencenações de um conflito que a eleição deveria ter encerrado.
Enquanto isso, os próprios parlamentares, quando ouvidos de forma sistemática, demonstram que suas prioridades seguem descoladas das urgências sociais. A pesquisa realizada pela Quaest com 203 deputados federais evidencia um Parlamento mais preocupado com pautas simbólicas e com sua relação com o Executivo e o Judiciário do que com questões estruturantes para a maioria da população. Temas como salário mínimo, jornada de trabalho, saúde pública ou fome sequer aparecem entre os principais problemas destacados espontaneamente pelos parlamentares. Ao contrário, o foco das insatisfações está nas relações institucionais: a maioria dos deputados acredita que o STF “invade frequentemente as competências do Congresso” e que o governo “dá menos atenção do que deveria aos parlamentares”. Esse descompasso entre as pautas prioritárias do Congresso e as demandas da sociedade, captado pela pesquisa da Quaest, já foi diagnosticado por diversos estudos na área das Ciências Sociais, que apontam para uma crise de representação e uma crescente desconexão entre elites políticas e cidadãos comuns. Essa percepção institucionalizada de desatenção transforma o Legislativo em arena de revanchismos, como revela o apoio à anistia e até à ideia de impeachment de ministros do Supremo, muito mais do que em espaço de resposta às demandas concretas da sociedade brasileira.
Mais do que omitir certas pautas sociais, parte significativa dos parlamentares sustenta posições contrárias aos interesses imediatos da classe trabalhadora. Segundo a mesma pesquisa, 70% dos deputados se declaram a favor da manutenção da escala 6×1 como regra obrigatória — ou seja, seis dias consecutivos de trabalho por um de descanso. Além disso, muitos expressam resistência à política de valorização real do salário mínimo, alinhando-se ao discurso de contenção fiscal que, na prática, recai sobre os ombros dos mais pobres. Em vez de representar os anseios da maioria, o Congresso se mostra cada vez mais alinhado a uma racionalidade econômica excludente e a interesses empresariais pouco dispostos a negociar avanços sociais.
A proposta de anistia não representa um acordo de pacificação institucional, mas uma forma de apagar juridicamente e moralmente a gravidade do 8 de janeiro. Se levada adiante, ela sinaliza que o sistema político brasileiro tolera — e até recompensa — a tentativa de ruptura democrática, abrindo brechas perigosas para a repetição de eventos semelhantes no futuro. O desejo de anistia não é apenas sobre os réus que já foram condenados, mas sobre o que está por vir. É uma aposta na normalização da exceção, no esvaziamento da memória e na anulação dos limites civilizatórios que o Estado Democrático de Direito deveria preservar.
Como sociólogo, recuso a ideia de que a anistia seja uma questão neutra ou técnica. Ela é, antes de tudo, um gesto de poder, uma tentativa de disputar a história e de enquadrar a democracia dentro dos limites toleráveis por quem jamais se reconciliou com o resultado das urnas. A sociedade, ao rejeitar amplamente os atos de 8 de janeiro e ao atribuir responsabilidades políticas claras, já deu sua resposta. Cabe ao Congresso ouvi-la — e não trai-la.
Francisco Robert Bandeira Gomes da Silva
Doutor em Sociologia