15 de novembro de 2025

Justiça de transição no Brasil, um longo caminho

Atualizado há 3 horas

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Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

A expressão justice in times of transition, que deu origem ao termo Justiça de Transição, surgiu pela primeira vez durante uma conferência proferida em 1992 pela professora Ruti Teitel, da Escola de Direito de Nova York. Nas palavras da referida autora, a justiça transicional consiste numa “concepção de justiça associada a períodos de mudança política, caracterizada por respostas legais para confrontar os abusos dos regimes repressivos anteriores”.

Ao referir-se às estratégias concretas para efetivar uma justiça transicional, Fabiana Godinho MacArthur argumentou que o Estado pós-ditatorial tem deveres que giram em torno de quatro elementos: “a punição de agressores, a reparação das vítimas, a busca pela verdade e pelo resgate da memória e identidade nacionais, bem como a realização de reformas institucionais democráticas”.

Na América Latina, a Argentina é uma referência no que diz respeito a Justiça de Transição. Logo após o colapso da ditadura militar neste país, o Presidente Raul Alfonsín manifestou-se de forma contundente pela investigação e julgamento dos militares argentinos. O famoso “Julgamento das Juntas”, iniciado em 22 de abril de 1985, culminou com a condenação do general Jorge Rafael Videla e do almirante Massera a prisão perpétua. Outros militares argentinos foram condenados a penas entre 4 e 17 anos de prisão.

Diferente da Argentina, a transição democrática no Brasil ocorreu sob o controle das Força Armadas. Por isso, tivemos uma abertura “lenta, gradual e segura”, onde o retorno à democracia foi costurada por acordos entre os generais e a oposição civil. Esta forma de transição, garantiu que os militares continuassem a exercer grande influência no Estado brasileiro, mesmo que não estivessem mais no controle político da nação. Neste sentido, uma peça-chave foi a Lei de Anistia de 1979, na verdade uma autoanistia, que impediu o julgamento de militares e demais agentes do Estado por atos de violação aos direitos humanos no período de exceção (tortura, execuções, desaparecimentos).

Desta forma, nossa experiência de transição democrática terminou dificultando a efetivação da Justiça de Transição no país. Todavia, por pressão dos familiares das vítimas, ocorreram pequenos avanços. Durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, a Lei nº 9.140/1995 criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. O artigo 1º da referida lei dispôs que: “São considerados como mortos para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, desde então, desaparecidas, sem que delas haja notícias”. A CEMDP teve a atribuição de reconhecer aqueles que foram mortos pelo Estado, em razão de suas opções políticas, para fins de emissão de certidão de óbito, anistia ou indenização.

Outro avanço significativo, foi a criação da Comissão de Anistia (instituída pela Medida Provisória nº 2.151/2001 e oficializada pela Lei nº 10.559/2002), cuja principal função consiste em analisar requerimentos e emitir pareceres sobre pedidos de anistia por perseguição política do Estado, entre 1946 e 1988, podendo resultar em reparações econômicas, reintegração em postos de trabalho ou medidas simbólicas, como as Caravanas da Anistia, sessões públicas e itinerantes onde as apreciações de pedidos de anistia eram seguidas de atividades educativas e culturais de resgate e preservação da memória política deste período. Todavia, uma ampla investigação sobre os crimes da ditadura brasileira só ocorreria a partir da instalação da Comissão Nacional da Verdade, pela Presidenta Dilma Rousseff, em 2012.

A despeito destas iniciativas, a responsabilização penal dos agentes da repressão continua sendo o principal desafio da Justiça de Transição no Brasil. Ao contrário do ocorrido na Argentina, no Chile e no Uruguai, o Judiciário e o Legislativo tem atuado em defesa da Lei de Anistia de 1979. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou seguimento a uma ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que demandava a inconstitucionalidade da referida lei. Em 2013, o Senador Randolfe Rodrigues elaborou um projeto de lei para revisar a Lei de Anistia. Cinco anos depois, o referido projeto foi arquivado. Ao mesmo tempo, o Estado brasileiro vem sendo reiteradamente condenado por decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) relativas à casos envolvendo mortos e desaparecidos políticos pela ditadura.

O tema dos mortos e desaparecidos durante a ditadura militar foi reavivado pelo filme “Ainda estou aqui”, que abordou a história de Eunice Paiva para solucionar o desaparecimento forçado do esposo, o ex-deputado Rubens Paiva. Vencedor do Oscar na categoria de melhor filme estrangeiro, “Ainda estou aqui” sensibilizou o país e instigou uma importante reflexão sobre os crimes da ditadura. O filme chegou a ser citado pelo Ministro Flávio Dino, do STF, num voto recente em que o magistrado levantou a tese de inaplicabilidade da Lei de Anistia aos crimes de sequestro e ocultação de cadáver, delitos permanentes que não estariam sob a proteção da anistia de 1979, o que representa uma luz no fim do túnel para os familiares das vítimas que ainda lutam por justiça.

No dia 8 de outubro de 2025, o Estado brasileiro deu mais um passo importante no desenvolvimento de sua Justiça de Transição. Durante uma cerimônia organizada pela Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), familiares de vítimas da ditadura militar no Brasil receberam 63 certidões de óbito retificadas. Nas referidas certidões, agora consta a seguinte redação “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da repressão sistemática à população, identificada como dissidente política por regime ditatorial instaurado em 1964”. Trata-se de uma reparação moral de grande importância no processo de reconstrução da democracia brasileira.

Outro fato importante, ocorrido no ato ecumênico que lembrou os 50 anos do assassinato de Vladimir Herzog, foi o pedido de perdão que a Ministra Maria Elizabeth Rocha, do Superior Tribunal Militar (STM), dirigiu a todas as vítimas de graves violações aos direitos humanos no período da ditadura. De acordo com Elizabeth, “ratou-se de gesto eticamente republicano e constitucionalmente afinado com a memória, a verdade e a não-repetição de violências, certa de que a dor transpassa o coletivo e que, muitos, como eu, têm registros de lágrimas derramadas por familiares martirizados pela ditadura”.

Ainda temos muito por fazer. Todavia, as trajetórias dos governos pós-ditatoriais na América Latina tem demonstrado que é possível garantir justiça e dignidade para as vítimas de violações aos direitos humanos e seus familiares, cimentando, assim, o caminho para a consolidação da democracia em nosso país.

Ramsés Pinheiro – historiador

ARAS, Vladimir. O julgamento das Juntas Militares na Argentina em 1985. Disponível em: https://vladimiraras.blog/2022/11/08/o-julgamento-das-juntas-militares-argentinas-em-1985/. Acesso em 03 de outubro de 2023.

Certidões de óbito de vítimas da ditadura responsabilizam Estado. Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-10/certidoes-de-obito-de-vitimas-da-ditadura-responsabilizam-estado

MCARTHUR, Fabiana Godinho. Justiça de Transição: o caso brasileiro. Revista Anistia, política e Justiça de Transição, nº 1, janeiro/junho 2009.

TEITEL, Ruti. Apud: QUINALHA, Renan Honório. Justiça de Transição: contornos do conceito. Dissertação (Mestrado). Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.


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