
Wesley Igor Gomes*
wesleygomes@tvclube.com.br
Era uma tarde quente, não tão diferente das que costumam ocorrer, todos os anos, neste mesmo período, quando o aposentado Francisco de Morais, 61 anos, sentiu vontade de tomar o cafezinho de sempre – mesmo no calor, o teresinense não fica sem – faltando o bendito adoçante. Ele não pensou duas vezes e correu ao pequeno comércio próximo de casa.
Espaços de venda como esse, situados em várias esquinas, são a cara da capital e contam histórias por meio de anúncios nas paredes, das cadernetas com nomes de clientes que possuem contas em aberto e, também, na prosa entre caixa e freguês. Em celebração ao aniversário de 170 anos de Teresina, nesta terça-feira (16), o Portal ClubeNews traz a nostalgia desses locais que persistem por serem fonte de renda (e salvação na correria diária) para muitas famílias.
Em busca de oportunidades na capital
Desde os 12 anos de idade, o amarantino Francisco Eduardo esteve envolvido com comércio. Foi observando e ajudando no trabalho do pai que aprendeu o ofício. E foi esse trabalho que, logo mais, o possibilitou ganhar o próprio dinheiro. Em 1978, vivendo na cidade de Angical, Centro-norte do Piauí, Francisco, juntamente da família, partiu para a capital em busca de novas oportunidades e sonhos, até então, guardados no seu âmago.
De 1978 a 1992, ele exerceu a profissão de comerciante ao lado do pai, Manoel Gomes de Sousa, no Mercado do Parque Piauí, zona Sul. A necessidade de ter o próprio negócio foi crescendo, era chegado o momento do amarantino dar o próximo passo. No bairro Promorar (zona Sul), ele abriu um pequeno e bem “jeitoso” estabelecimento, hoje conhecido como Comercial e Frigorífico São Francisco.
“Comecei a batalha. Era só uma casinha construída e não tinha nada. Aqui (Promorar) tinha pouca gente. Vi o bairro crescer desde o início. Não tinha calçamento, não tinha nada, em 1992. Era aquela piçarra. Não tinha nada de canteiro de obra feito. Depois que construíram o viaduto (na BR-316), aqui começou a crescer”, relembrou Francisco, atualmente com 55 anos.
Passados 30, depois 60, 90 dias… A mercearia já possuía uma clientela fiel que, todos os dias, ia ao local em busca daquilo que seria a próxima refeição. Saía arroz, feijão, ovos, entre outros alimentos. Francisco conta, muito bem-humorado, que papel higiênico era um dos produtos mais populares nos primeiros meses de vida do comércio.
Grandes redes de supermercados e o caderno de fiado
O ir e vir dos dias mostravam para o comerciante a necessidade de investir numa maior variedade de produtos e formas de fidelizar a clientela, que começava a se aventurar nos novos supermercados da região. Foi o famoso caderno de fiado, aquele em que é anotado o nome de clientes – mas só os selecionados e bom pagadores – com as compras, o que segurou as pontas nesse período. A caderneta, mesmo quando todas as folhas brancas são preenchidas, se reinventa e vive ali, no balcão, do ladinho da calculadora e da caneta.
“Quando um grande supermercado chegou, ele atacou todas as redondezas dos comerciantes. ‘Vai quebrar!’, todos nós pensávamos. Muitos colegas por aqui quebraram com essa chegada. Passou seis meses, a gente superou. Eu, principalmente por ficar mais perto, peguei uma pancada maior. E eu tinha a caderneta, foi ela que salvou”, comentou Francisco, que segurava um caderno volumoso de 20 matérias.
De segunda a segunda, o expediente começa cedo. Os primeiros produtos colocados na calçada são de limpeza e ração para animais. Ao adentrar no ambiente, de um lado frutas, verduras e legumes que enchem os olhos com cores estonteantes. No outro, artigos de higiene, variados temperos e, também, bebidas alcoólicas.
Lá no fundo, atrás do balcão, um frigorífico – posto depois de dez anos da abertura do comércio – com algumas peças de carne expostas e balançando em ganchos. No alto da parede, uma imagem de São Francisco das Chagas, santo do qual o pequeno empreendedor é devoto. No entanto, o que mais chama atenção é ele: o grande e reluzente baleiro, sempre girando cheio de bombons, chicletes e pirulitos.
Conversa vai, conversa vem, situações inusitadas ganham a mente do comerciante Francisco. Ele comenta que a mercearia já passou por algumas poucas e boas, desde assaltos, que alteraram a sistemática de funcionamento, até mesmo de clientes embriagados e encrenqueiros buscando por mais bebida.
De forma bem-humorada, diferente de quando aconteceu, ele relata o momento em que uma cliente idosa desmaiou no espaço. “Ela estava procurando carne, quando disse ‘meu filho, estou passando mal’ e eu: ‘ave maria, não vá morrer aqui dentro não!’. Quando dou fé, ela ‘pá!’ caiu, e eu aperreado. Ela ainda falou ‘liga lá para a minha filha!’ e eu, ‘como? se eu não sei nem seu telefone?’. Com muito tempo, ela pediu para pegar a bolsinha com o telefone. Demorou pouco, a filha dela veio pegá-la aqui e ficou tudo bem”, contou.
Tem de tudo um pouco
No bairro Monte Castelo, também na zona Sul de Teresina, em meio às famosas e já conhecidas ladeiras que compõem o local, outra mercearia sobrevive, firme e forte, ao tempo. O Comercial do Seu Zito tem de tudo um pouco, como afirma o proprietário José do Egito (61 anos), que nomeu o estabelecimento com o seu apelido. Ele é natural de Oeiras, no Sudoeste do Piauí.
O dom para o comércio surgiu enquanto José observava o patriarca da família executando serviços rurais. “Meu pai é um homem do campo, agricultor e criador de animais. A gente estudava em Oeiras e, no período das férias, a gente ia para o campo, para a roça, o interior, ajudar ele na terra e nos criatórios de animais”, falou.
Quando atingiu a maioridade, decidiu desbravar o ‘Brasilzão’. Passou por cidades como São Paulo e Brasília, mas sabia que, no fundo, o lugar ideal para construir família e negócio seria no seu estado de origem. “Não sei se está exatamente com 40 anos, mas tá chegando muito perto. Cheguei em 1981. Depois comprei o local, que era só terreno, construí e passei a morar na propriedade, imóvel meu”.
A partir daí, ele montou uma singela quitanda que, crescendo aos pouquinhos, acabou se transformando em um estabelecimento muito querido e utilizado pelos moradores. Faltou sal para o arroz? A vizinhança já sabe para onde correr. Quer algo doce para melhorar a tarde? O Comercial do Seu Zito tem até ‘tijolos’ de rapadura, alimento a base de cana-de-açúcar e popular no Nordeste. Refrigerante para dias quentes? Tem também!
Além dos adultos, a clientela mais nova, formada por crianças, vez ou outra, bate perna no mercantil de Francisco. Os olhos dos pequenos brilham e se tornam “pidões” ao ver as balas que preenchem o balcão. Não há como resistir. Elas saem contentes – e sem pagar – com as guloseimas. Como o comerciante demonstra, é muito difícil dizer não, pois isso alegra tanto o espaço, quanto o seu dia.
Adaptação
Sobre as mudanças que o empreendimento teve que passar, José do Egito destacou que a modernidade nunca foi um empecilho, não causava medo a ele, e sim uma vontade de aprender mais e pôr o novo conhecimento em prática. “Fiz cursos em todas as áreas dessa parte de informática para aprender. Também uso Pix e cartão de crédito. Faço do jeito que dá certo. Ao longo desses 20 anos, quando começou a surgir essas grandes redes de supermercados, o pequeno comércio vem sendo, praticamente, saco de pancada, estamos lutando mais para sobreviver”.
O famoso caderno de fiado também é utilizado no comercial. Entretanto, após passar por alguns perrengues com clientes caloteiros, a lista ficou cada vez mais seleta. “Alguns amigos para os quais eu vendia fiado me deram prejuízos, inclusive um me deu prejuízo equivalente a uma banda de boi completa. Comprou e nunca me pagou. Nunca mais o vi, mas, por conta disso, todos aqueles que me devem estão perdoados. Se tiverem que ir pro inferno por causa dessa dívida não vão não, estão perdoados. Não vou dar esse gosto para o capeta”.
Convivência e troca de afeto
Cultural e historicamente, os mercadinhos também são espaços de convivência, de troca de afeto. O teresinense tinha, por exemplo, o costume de ir a esses locais para bater papo com os comerciantes, buscar informações e se atualizar sobre a vizinhança. Bastava puxar um banquinho para que a conversa rolasse solta. Dessa forma, a população estabelecia um vínculo com esses estabelecimentos de arquitetura simples e, ao mesmo, tempo, fascinante.
“As mercearias ajudam no estímulo ao apreço do lugar, ou seja, você, cidadão, criar uma memória afetiva com determinado espaço e/ou região e, assim, usar este espaço e, consequentemente, zelar por ele”, destacou a arquiteta e urbanista Lorena Moura, que continua: “as mercearias eram e continuam sendo espaços de referência – para localizar e buscar informações. O dono(a) têm um papel muito importante de ser agregador de informações, sempre atentos e vigilantes”.
Mercadinhos e economia
Enfrentar as grandes redes de supermercado, como os empreendedores Francisco e José pontuaram, é um desafio que perdura. Apesar de várias mercearias nos quatro cantos de Teresina, a população tende a realizar as compras mensais em estabelecimentos maiores, enquanto aquilo que falta no dia a dia, sendo mais pontual, preferem buscar no pequeno comércio que está ali, do lado.
O Portal ClubeNews conversou com o professor do curso de Economia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), João Victor Silva, que explica a importância dos pequenos comércios para a capital. “Esses mercadinhos, historicamente, são responsáveis pela manutenção do emprego e, principalmente também, pelos abastecimentos dos bairros periféricos que não são abastecidos pelos grandes centros comerciais na cidade”, esclareceu.
Ainda segundo o professor, quando a população deixa de realizar a compra do mês para adquirir pontualmente, o dinheiro não circula no bairro, muito menos na capital. “Esse hábito faz com que a moeda não fique mais na cidade porque, ao comprar em grandes mercados, você está transferindo renda para à matriz que não fica no estado do Piauí. Basicamente, você compra nas grandes marcas e acaba transferindo renda de Teresina e bairros para outros centros comerciais no país”.
Mercadinhos como o São Francisco, o Seu Zito e tantos outros que compõem as ruas de Teresina não são somente pontos de compra e venda, mas de história, cultura e tradição que resguardam, como num baú aberto, memórias. É identidade que vai sendo fortalecida de geração para geração.
Lembranças de infância saltam, imediatamente, da mente do motorista Antônio Fernandes, de 54 anos, ao entrar nesses pequenos comércios. É o resgate de tempos em que sua mãe, já falecida, pedia para ele, garotinho na época, comprar algo que iria compor a mesa da família.
“Veio tudo na minha cabeça de quando eu era novo. Comprova café, pão massa grossa, ki-suco (refresco de pacote)… O baleiro também era muito presente na minha vida”, expressou o motorista, que continua: “mamãe tinha uma conta no caderninho de fiado, meu pai também, eles eram clientes fieis e pagavam certinho no final do mês. Lembrei demais da minha família. As coisas eram díficil, naquela época, e a gente comprava de pouquinho mesmo”.
Bom, já sabe: faltou açúcar ou adoçante – como o Francisco de Morais, lá do inicio dessa história, prefere – para o cafezinho? Dê uma olhada pelo seu bairro que poderá se surpreender.
*Sob supervisão da jornalista Lucy Brandão
Siga o Portal ClubeNews no Instagram e no Facebook.
Envie sua sugestão de pauta para nosso WhatsApp ou Telegram.
Envie sua sugestão de pauta para nosso WhatsApp e entre no nosso Canal.
Confira as últimas notícias: clique aqui!