
Estamos celebrando os 40 anos de publicação do livro Brasil Nunca Mais, um contundente relatório sobre a tortura e outras graves violações aos direitos humanos praticadas por agentes do Estado brasileiro durante a ditadura militar (1964-1985). Lançada em 15 de julho de 1985, apenas quatro meses após o fim do regime, a primeira edição do referido livro, de 5 mil exemplares, esgotou em 24 horas. Seguiram-se dezenas de reimpressões. Em seis meses, 100 mil exemplares da obra foram vendidos, o que demonstrou a avidez dos brasileiros em conhecer as atrocidades perpetradas pela ditadura após duas décadas de um silêncio imposto pela censura.
O livro discorre sobre as origens da ditadura militar no Brasil, a montagem do seu sistema de repressão, o perfil dos atingidos, a subversão do direito e o emprego da tortura como peça essencial da engrenagem repressiva posta em funcionamento pelo regime instaurado em 1964. Contrariando o argumento defendido pelos apoiadores da ditadura, a tortura não foi uma ação de indivíduos patologicamente sádicos, mas uma prática utilizada sistematicamente pelo regime. Envolvia método, treinamento e especialização. A obra demonstrou que a tortura não foi direcionada apenas contra os militantes de organizações políticas de esquerda, mas também contra crianças, mulheres e gestantes presas ou sequestradas pelos agentes da ditadura.
A despeito do enorme sucesso do Brasil Nunca Mais, poucos devem conhecer a epopeia que resultou na sua publicação. Em 1979, a advogada Eny Moreira e os advogados Luiz Eduardo Greenhalgh, Luis Carlos Sigmaringa Seixas e Mário Simas conceberam o projeto “Testemunhos” para coletar informações e evidências de violações aos direitos humanos, contidas nos processos judiciais militares existentes no Superior Tribunal Militar (STM), e compilá-las em um livro-denúncia. Nas diversas entrevistas concedidas pelos mentores do projeto, havia uma ênfase na necessidade de preservar a memória sobre a ditadura, denunciar seus crimes contra os direitos humanos e responsabilizar seus agentes. O medo de que os militares destruíssem os processos judiciais para inviabilizar futuras investigações foi outra preocupação que motivou os advogados a arriscarem-se nesta empreitada.
O projeto envolveu um intenso trabalho clandestino que mobilizou diversas pessoas: primeiro, os advogados retiravam os processos do STM e os levavam para sala comercial em Brasília, próxima do referido tribunal, onde foi montada uma firma de xérox de fachada; neste local, dois funcionários fotocopiavam todo o material, o que deveria ser feito em 24 horas, prazo que os advogados tinham para devolver os processos; em seguida, as cópias eram transportadas em caminhões para São Paulo, onde eram microfilmadas. Temendo que os órgãos de repressão da ditadura apreendessem o material, os rolos de microfilme foram enviados para a sede do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), em Genebra, na Suíça.
O CMI e a Arquidiocese de São Paulo financiaram todo o projeto, cujas principais figuras públicas viriam a ser o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e o pastor Jaime Wright, Reverendo da Igreja Presbiteriana. Ao longo de seis anos (1979-1985), a equipe do projeto “Testemunhos” conseguiu reproduzir 707 processos judiciais militares do STM. Foram feitas cerca de 900 mil cópias em papel e produzidos 543 rolos de microfilme. A catalogação e análise deste imenso material por uma equipe de especialistas em diversas áreas deu origem ao chamado “Projeto A”, um relatório de 6.891 páginas, dividido em 12 volumes, sobre as violações aos direitos humanos perpetradas no Brasil durante o regime militar.
Diante das dificuldades de leitura e manuseio deste trabalho, Dom Paulo idealizou o “Projeto B”, que consistia em um resumo do “Projeto A”, redigido numa linguagem acessível para um público mais amplo. A tarefa foi operacionalizada pelos jornalistas Ricardo Kotscho e Frei Betto, tendo como coordenador Paulo de Tarso Vannuchi. Nascia assim o livro Brasil Nunca Mais. Vannuchi registrou posteriormente que a mudança no nome do projeto veio após o lançamento de Nunca Más, o relatório publicado em 1984 pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas da Argentina.
As cópias integrais dos 707 processos judiciais militares foram doadas pela Arquidiocese de São Paulo ao Arquivo Edgar Leuenroth (AEL) na Unicamp. Já os 543 rolos de microfilme que estavam Genebra, foram doados pelo CMI ao Latin American Microform Project (LAMP), projeto mantido pelo Center for Research Libraries (CRL), um consórcio internacional de universidades, faculdades e bibliotecas que funciona em Chicago, nos EUA. Diante da deterioração do acervo físico presente no AEL, e também do “sumiço” de páginas dos processos que relatavam casos de tortura, o Ministério Público Federal (MPF) começou a empenhar-se para repatriar os microfilmes que estavam nos EUA, o que se concretizou apenas em 2011.
Por iniciativa do MPF, os 543 rolos de microfilme foram então digitalizados e disponibilizados ao público através do site desta instituição, o que ocorreu no dia 9 de agosto de 2013. Desde então, o acesso integral a este material vem impulsionando novas pesquisas que ampliaram nosso conhecimento sobre a ditadura militar. Tive a felicidade de iniciar o mestrado no mesmo ano em que todo o acervo de processos judiciais do Brasil Nunca Mais foi disponibilizado, fator essencial para a construção de minha dissertação sobre as Ligas Camponesas no Piauí.
Os ataques que a democracia brasileira e os direitos humanos vêm sofrendo nos últimos anos reforçam a importância do Brasil Nunca Mais como uma leitura fundamental para compreendermos nosso passado e construirmos um futuro de respeito e tolerância.
Ditadura Nunca Mais.
Ramsés Pinheiro
Historiador
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