
“Meu relógio está dizendo que algo está errado.” Foi assim que começou a preocupação de SHM, um homem de 32 anos que passou a monitorar seus sinais vitais com obsessão depois de ganhar de presente um relógio inteligente — desses dispositivos vestíveis, ou wearables, que prometem nos manter informados sobre nossa saúde a todo momento.
Nos últimos anos, relógios, anéis, pulseiras e até camisetas tecnológicas se tornaram quase uma extensão do nosso corpo. Eles medem batimentos cardíacos, qualidade do sono, temperatura corporal, oxigenação do sangue e até algo chamado “readiness” — um índice que tentaria prever se você está preparado para enfrentar o dia. Tudo isso, em tese, para nos ajudar a viver melhor. Mas será que estamos mesmo?
O que era para ser uma ferramenta de bem-estar, para muita gente tem se transformado em mais uma fonte de ansiedade, num mundo já tão cheio de gatilhos. A tal da “autoquantificação” — hábito de medir tudo no corpo, todos os dias — virou uma promessa de controle num mundo cada vez mais fora de controle. O problema é que, nesse esforço constante para entender os números, acabamos nos afastando das sensações mais básicas e essenciais: fome, cansaço, dor, angústia ou tranquilidade.
SHM, por exemplo, começou a ficar tenso quando seus “índices de prontidão” caíam. Em um episódio mais intenso de ansiedade, parou em uma farmácia e gastou mais de R$ 200 para comprar um aparelho de medir a pressão arterial e confirmar se algo estava errado. Resultado: estava tudo bem. Mas a tranquilidade não durou. O ciclo de monitoramento e ansiedade seguiu, até que recomendei: por que não deixar o relógio de lado?
Esse tipo de relato tem se tornado cada vez mais comum. Pessoas saudáveis, que antes não se preocupavam tanto (para não dizer se angustiavam) com sua saúde, passam a fazê-lo por causa de dados que, isoladamente, pouco significam. Um ritmo cardíaco levemente elevado, uma noite com sono mais leve, um percentual de sono REM abaixo da média — tudo isso, na ausência de sintomas reais, pode ser só… vida normal! Mas, lidos sem contexto, esses números soam como alertas vermelhos, alimentando inseguranças.
Uma amiga, psicóloga que atendeu uma dessas pessoas, foi clara: para alguns, esses dispositivos são gatilhos. Transformam o descanso em tarefa, o sono em competição, o cuidado com o corpo em cobrança.
É claro que a tecnologia tem seu valor. Em alguns casos raros, os dados captados por dispositivos vestíveis ajudaram a identificar doenças em fase precoce. Outro paciente, usuário de um anel de monitorização, por exemplo, notou alterações constantes em sua temperatura corporal e, pouco tempo depois, foi diagnosticado com tuberculose – já em tratamento e evoluindo bem! Casos como esse geram esperança. Mas também criam uma armadilha: a ideia de que, se estivermos atentos o bastante, poderemos detectar todos os problemas antes mesmo de sentirmos algo.
Mas o corpo humano é complexo. Nem toda variação é sinal de alarme. Muitas vezes, é só resposta ao cansaço, ao estresse, à falta de sono, a uma fase difícil. E, talvez, o mais saudável seja aprender a reconhecer esses sinais de forma direta, sem precisar que um aplicativo diga o que já sabemos: que estamos exaustos, sobrecarregados, precisando de pausa.
Afinal, como lembrou o professor J. Carbery, da Universidade de Dartmouth, nos EUA, que estuda a história da quantificação: “quanto mais confiamos nos dispositivos para nos dizer como estamos, menos escutamos o que nosso corpo realmente tem a dizer.” A saúde não deveria ser uma meta numérica. Deveria ser uma experiência vivida.
Então, da próxima vez que seu relógio ou anel disser que você dormiu mal ou que está com pouca energia, pare por um momento. Feche os olhos. Respire fundo. E, antes de tudo, pergunte a si mesmo: “O que eu estou sentindo de verdade?”
Marcelo Luiz Martins
Médico Cardiologista, RQE no 864
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