O debate sobre a expansão das áreas irrigadas no Brasil está cada vez mais acalorado. De um lado, os ruralistas pressionam por mudanças na legislação para aumentar a irrigação e, consequentemente, a produtividade agrícola. De outro, ambientalistas e ONGs defendem que tais mudanças representariam um grave ataque ao Código Florestal e às áreas de preservação.
Contexto
Atualmente, a legislação brasileira protege as Áreas de Preservação Permanente (APPs), limitando intervenções apenas a projetos de utilidade pública e interesse social claramente autorizados por órgãos e entidades federais. Entretanto, dois projetos de lei (PL 1.282/2019 e PL 2168/2021) estão em tramitação no Congresso Nacional, buscando incluir os projetos de irrigação nessa categoria, o que permitiria a formação de barragens e reservatórios em APPs sob condições de licenciamento ambiental.
Oposição dos ambientalistas
Grupos ambientalistas, como a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiental Natural (Agapan) e o Instituto Socioambiental (ISA), têm se oposto firmemente a essas propostas. Classificam-nas como “liberação para o desmatamento” e uma “afronta ao Código Florestal”, temendo que a flexibilização das regras para barramento de cursos d’água possa levar a novos desmatamentos e agravar crises hídricas e energéticas.
Potencial de irrigação e benefícios
O Brasil possui um dos maiores potenciais de irrigação subutilizados do mundo. Com apenas 20% de suas lavouras irrigadas, há um vasto espaço para expansão. Defensores das mudanças legislativas argumentam que a irrigação é essencial para garantir a segurança alimentar sem necessitar de expansão territorial. Alegam que as barragens e reservatórios podem aumentar a disponibilidade de água, promover a infiltração até o lençol freático e minimizar conflitos pelo uso de recursos hídricos.[1]
PL-1282/2019: restrições e condições para a construção de reservatórios
O Projeto de Lei propõe alterações na Lei nº 12.651, de 2012 (Código Florestal), introduzindo condições específicas para a construção de reservatórios para irrigação em APPs. Essas condições são delineadas para assegurar que tais atividades sejam realizadas de maneira sustentável e responsável, aduzem. Segundo seus defensores, é uma falácia que o PL representará o uso indiscriminado e a destruição do meio ambiente, apontando que as principais exigências incluem:
- Licenciamento ambiental: a construção só pode ocorrer mediante licenciamento ambiental, garantindo que o projeto cumpra com as normas estabelecidas pelos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente e os planos de gestão de recursos hídricos.
- Práticas sustentáveis: o projeto e sua execução devem seguir práticas sustentáveis de manejo de solo e água, garantindo a qualidade e quantidade dos recursos hídricos.
- Outorga de uso de recursos hídricos: deve ser emitida uma outorga pelos órgãos gestores de recursos hídricos, assegurando que o uso da água está em conformidade com a legislação vigente.
- Cadastro Ambiental Rural (CAR): o imóvel deve estar inscrito no CAR, sistema que integra as informações ambientais das propriedades rurais.
- Condições de déficit hídrico: a construção de reservatórios é permitida apenas em estados que registraram déficit hídrico nos últimos cinco anos, evidenciando a necessidade de medidas para garantir a disponibilidade de água.
- Reposição ambiental: proprietários rurais devem realizar a reposição ambiental das áreas de APP alagadas, com exigências escalonadas baseadas no tamanho do imóvel, variando de isenção para pequenos imóveis até a reposição de três vezes a área suprimida para os maiores.
Defendem que estas disposições, ao contrário do que possa parecer, demonstram um esforço legislativo para equilibrar o desenvolvimento agrícola com a preservação ambiental. A proposta não simplifica a aprovação de projetos que possam prejudicar o meio ambiente, mas estabelece um framework rigoroso para garantir que a expansão da irrigação ocorra de forma responsável e sustentável.
Analisando o PL 2168/2021: infraestrutura de irrigação e dessedentação animal como utilidade pública
O Projeto de Lei 2168/2021, proposto pelo Deputado Jose Mario Schreiner, por sua vez, visa modificar o Código Florestal para incluir as obras de infraestrutura de irrigação e dessedentação animal como categorias de utilidade pública. Este status facilitaria intervenções ou a supressão de vegetação nativa em áreas de preservação permanente (APPs), mas sempre sob condições que garantam a segurança alimentar e hídrica do Brasil.
Os principais pontos do Projeto de Lei são:
- segurança hídrica e alimentar: o PL justifica que a classificação de barramentos e represamentos de cursos d’água como de utilidade pública é crucial para garantir a segurança hídrica e alimentar. Com uma média de chuvas de 1500 mm por ano e um período seco nas principais regiões agropecuárias, o Brasil necessita maximizar o uso de suas reservas hídricas para manter e aumentar a produção agrícola.
- Permitindo barramentos em APPs: atualmente, a legislação restringe severamente a supressão de vegetação em APPs, a menos que seja para usos especificamente autorizados. O PL 2168 busca incluir os barramentos para irrigação entre essas exceções, destacando a importância estratégica de acumular água durante períodos chuvosos para uso em períodos secos.
- Deslocamento de APPs: o projeto aponta que a construção de barramentos não eliminaria as APPs, mas deslocaria essas áreas para as margens dos reservatórios criados, mantendo a proteção ambiental sob uma nova configuração.
- Procedimentos ambientais rigorosos: mesmo com a reclassificação proposta, o licenciamento ambiental e todas as condicionantes necessárias para minimizar impactos ambientais continuariam sendo exigidos, garantindo que todas as obras sejam realizadas de acordo com padrões ambientais estritos.
- Utilização moderada de recursos hídricos: o Brasil usa apenas 2,7% das vazões de seus rios para irrigação, excluindo a vazão do rio Amazonas. O PL argumenta que há um potencial subutilizado significativo que poderia ser mais bem aproveitado para aumentar a produtividade agrícola sem comprometer o meio ambiente.
Além da polarização
Um dos grandes desafios no debate sobre irrigação é a polarização entre ruralistas e ambientalistas. Frequentemente retratados como adversários intransigentes, essa divisão simplista ignora a possibilidade de soluções que beneficiem ambos os lados. A verdade é que não precisa ser uma escolha entre desenvolvimento agrícola ou preservação ambiental; existem práticas e tecnologias que podem harmonizar estes dois objetivos importantes. O uso de técnicas de irrigação modernas e sustentáveis, como a irrigação por gotejamento, pode reduzir significativamente o consumo de água e o impacto ambiental, demonstrando que a preservação pode caminhar lado a lado com o uso produtivo dos recursos. Além disso, os órgãos e entidades de proteção ao meio ambiente terão controle sobre tais atividades podendo suspender a outorga do uso da água.
AGRONEGÓCIO. Produtor brasileiro luta para descriminalizar armazenamento de água para agricultura. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/agronegocio/produtor-brasileiro-luta-para-descriminalizar-armazenamento-de-agua-para-agricultura/>. Acesso em: 29 abr. 2024.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de lei que altera a Lei 12.651/2012, para considerar como de utilidade pública as obras de infraestrutura de irrigação e dessedentação animal. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2286627. Acesso em: 29 abr 2024.
BRASIL. Senado Federal. Projeto de lei que altera a Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012 (Código Florestal), para permitir, nas Áreas de Preservação Permanente (APPs) dos imóveis rurais, a construção de reservatórios para irrigação nas condições que especifica. Brasília, DF: Senado Federal, 2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2416754. Acesso em: 29 abr 2024.
[1] GAZETA DO POVO. Produtor brasileiro luta para descriminalizar armazenamento de água para agricultura. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/agronegocio/produtor-brasileiro-luta-para-descriminalizar-armazenamento-de-agua-para-agricultura. Acesso em: 29 abr. 2024.
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