A inteligência artificial e o direito achado na rua

Ao refletirmos sobre as consequências do uso de tecnologias perante o Poder Judiciário na busca de uma efetiva prestação jurisdicional.

Inteligência Artificial – Foto: Pixabay

Recentemente a JuLIA (Justiça Auxiliada pela Inteligência Artificial) do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí foi apresentada durante o Expojud Portugal, evento que reúne experiências e iniciativas de transformação digital da justiça brasileira e outros países de língua portuguesa.

Essa Inteligência Artificial realiza a leitura e faz análise prévia de petições, identifica jurisprudências, dispara notificações, calcula prazos e realiza movimentações processuais.

Essa transformação da Justiça piauiense se deve a sua modernização na busca por uma prestação jurisdicional mais efetiva, um clamor antigo da advocacia e da sociedade por uma justiça menos morosa que entregue as reparações dos direitos de forma plena e adequada.

Nesse viés, utilizando das vertentes da modernidade líquida, em que o sociólogo Zygmunt Bauman considera a liquefação de valores e o surgimento de outros, nos transparece um processo não apenas de modernização da Justiça, mas também de transformação, cabendo-nos refletir a influência das máquinas na construção do direito.

Não é estranha essa premissa em um ambiente em que metadados e algoritmos dominam, influenciando nosso comportamento a todo tempo. Em tal modo, o Poder Judiciário brasileiro tem se lançado em cenário gerencial desses dados em que números e prazos passaram a ser indicadores de “Justiça”.

Metas traçadas pelo Conselho Nacional de Justiça, estratégias de gerenciamento processual, uso do sistema multiportas de resolução de conflitos, entre outras medidas alternativas, têm sido utilizadas como forma de aperfeiçoamento do conceito de prestação jurisdicional efetiva.

O que nos remete a seguinte reflexão: é essa então a nova percepção de prestação jurisdicional efetiva? Moldada por algoritmos e preconcepções terminológicas advindas de um banco de dados criado e validado em um ambiente puramente gerencial?

Bom, no âmbito da ciência do direito uma das grandes reflexões, ainda não liquefeita, é sobre a norma jurídica. Esta seria a finalidade ou a forma de expressão do direito? Ela teria como conteúdo a Justiça, entendida esta como valor ético?

Diante de diversos estudos, podemos considerar que a norma jurídica quando vigente passa por um processo de validação social, cujo objetivo é evidenciar sua aplicabilidade perante os que são afetados direta ou indiretamente pelo conteúdo daquela norma, justa ou injusta.

Esse processo de validação social da norma é o que, em apertada síntese, infere-se do “Direito achado na rua” teoria ligada a Roberto Lyra Filho, jurista brasileiro, pois através da sociedade é que se poderá construir efetivamente o Direito.

De nada adiante criar uma norma se ela não trouxer consigo a capacidade de alterar a realidade em que ela está apta a incidir seus efeitos e para isso ela deveria ser moldada, reflexa e inspirada em elementos advindos da própria sociedade, como o “fato” e o “valor”, elementos trazidos aqui na visão de Miguel Reale, jurista brasileiro autor da teoria tridimensional do direito.

As decisões judiciais nada mais são do que normas jurídicas em concreto, aplicáveis a um fato e a determinadas pessoas, cuja existência dessa decisão ocorreu mediante lesão, grave ameaça ou pretensão resistida ao exercício de direito específico.

Ou seja, seu nascedouro deve-se a um ambiente em que situações econômicas, sociais e políticas jamais podem ser desconsideradas, caso contrário não haveria, por exemplo, a hipervulnerabilidade do consumidor, tanto no âmbito processual quanto material, face às condições privilegiadas das prestadoras de serviços, fabricantes, bancos e indústrias que dominam os meios de produção.

Ao refletirmos sobre as consequências do uso de tecnologias perante o Poder Judiciário na busca de uma efetiva prestação jurisdicional, onde decisões padronizadas são produzidas em lotes e análise textuais são delegadas às máquinas.

O uso de base de dados que possam ser considerados distantes da realidade social, econômica e política do ser humano, evidencia a construção do direito com viés pragmático, tecnicista, em que a aplicação da norma observará elementos objetivos, sendo a sensibilidade humana apenas ao final, e talvez, superficial, deixada em segundo plano, em prol da celeridade gerencial.

Acredita-se que esse cenário deva ser evitado ao máximo, haja vista a busca da essência do direito deva ser a Justiça e não apenas elementos gerenciais e quantitativos. Refletir o contexto regional e social é necessário para que se possa construir a Justiça com o olhar para onde ela está inserida.

É preciso, sim, os préstimos dos avanços tecnológicos em prol da sociedade, incluindo-se a Justiça como máxima de ordem e segurança, mas assim como a norma jurídica está para o direito, a tecnologia deve ser apenas o meio e não o fim.

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