ESPERANÇA: um grito que ecoa do sertão do Piauí para o mundo

Artigo de apoio à luta e resistência dos negros

Ilustração de Esperança Garcia produzida pelo instituto que leva seu nome, em Teresina — Foto: Reprodução/Instituto Esperança Garcia

O período colonial brasileiro foi marcado pela presença de africanos, de diferentes procedências, das mais diversas regiões de África. Esses sujeitos, mulheres e homens negros, quando trazidos para as Américas na condição de escravos, foram inseridos nos mais diversos setores e, obrigados a desenvolver as mais diversas atividades laborais, na casa, na rua, na roça, entre outras. Há registros de seu movimento nos inúmeros locais de trabalho das cidades, das feiras, dos mercados, minas de ouro e das fazendas. A atuação desses sujeitos escravizados ou em situação de “liberdade” estendia-se pelas estradas, praças, feiras, mercados públicos e, até mesmo, nas poucas indústrias existentes no país. Trazemos então como cenário a província do Piauí, localizada na região Nordeste do Brasil, no momento histórico em que viveu a mulher Esperança Garcia.

O atual Estado do Piauí foi durante muito tempo considerado pelo colonizador como um lugar sem dono, exposto à invasão de qualquer um, desconsiderando-se a presença dos povos indígenas. Em tempos remotos, antes dos colonizadores europeus, especialmente portugueses, se instalarem na região e constituir a Capitania do Piauí, toda a extensão a oeste do rio São Francisco era denominada por “Sertão de Dentro” ou “Sertão de Rodelas” e pertenceu a diferentes capitanias. Num primeiro momento esteve sob a administração de Pernambuco, que a princípio seria até 1695, todavia, fica até 1715. Noutro momento, esteve sob a jurisdição da Capitania do Grão-Pará e Maranhão. E ainda, sob a jurisdição eclesiástica da Bahia. Somente em 1718, foi criada a Capitania de São José do Piauí e instalada em 1758.

De acordo com Renato Marcondes, professor da USP de História Econômica e a professora da USP, Miridan Falci, o Piauí segue a rota da colonização a partir de rotas migratórias vindas das províncias vizinhas e mesmo de outras regiões do Brasil. Pernambuco, Bahia, Ceará, Maranhão e, até em certo momento, vindas do sul, da região de Goiás ou mesmo da região de São Paulo, Santana do Parnaíba, sempre ligadas aos ciclos econômicos dominantes.

Quando buscamos compreender a inserção de africanos e africanas escravizadas na província do Piauí, a referência histórica nos conduz ao ano de 1697, quando o padre Miguel de Carvalho na sua narrativa descreve o sertão do Piauí, afirmando que já existia ali, mais de uma centena de fazendas. Só na região de Oeiras, região Sul do Estado, onde foi a primeira capital do Piauí e região onde Esperança Garcia escreveu sua carta, já se somavam 68 as fazendas de criação onde moravam 115 pessoas negras (escravizadas), 36 indígenas, 8, que ele chama de mestiços e 84 brancas, totalizando 243 habitantes.

Visivelmente, a população negra escravizada superava os demais grupos étnicos. Desse modo, é possível supor que os grupos de negros mais indígenas, por serem maioria e por se encontrarem na condição de escravizados vivendo a violência dessa condição, inspirava atenção por parte da sociedade branca e opressora. Esperança, com sua carta denúncia, nos leva a pensar por esse prisma. Ou seja, esses sujeitos escravizados, violentados e maltratados pelos defensores do escravismo criminoso, imerso no universo do campo, do sertão, da caatinga, da seca severa, como é o caso do Piauí, precisavam de atenção para se evitar as fugas em massa, ou mesmo os levantes.

A partir dos historiadores Pedro Calmon e Lima Sobrinho, compreendemos que o povoamento e exploração do Piauí inicia-se a partir de dois tipos de conquistadores/exploradores, quais são, o sertanista de contrato, encarregado pela dominação e caça de indígenas para vender; e os sesmeiros, ligados à Casa da Torre, que eram criadores de gado, isso já em fins do seiscentos.

Seguido por africanos, mestiços e indígenas catequizados, homens aventureiros e viajantes vão povoando o interior do Piauí, formando seus primeiros núcleos. Possivelmente foi num desses grupos que chega em terras piauienses, os antecedentes de Esperança, a mulher negra escravizada que entra na história do Piauí, ainda nos anos de 1700, e chega a ser considerada a primeira advogada do Piauí, 267 anos depois do seu nascimento.

Nós, duas mulheres e um homem negros do século XX, fomos provocados a escrever sobre Esperança, e nos sentimos desafiados dada a tamanha responsabilidade em trazer do setecentos, uma narrativa potente sobre Esperança, uma mulher de muita força e coragem; inspiradora e brava ao denunciar a violência do escravismo criminoso (Séc. XVI ao XIX).

Enquanto pesquisadores das ciências humanas e sociais, temos o compromisso de redigir uma História do Brasil que inclua todos os sujeitos sociais, logo, trazer como protagonista os grupos que a historiografia mais conservadora subtrai, invisibiliza, nega, exclui. Considerando que, a História do Brasil ensinada nas escolas nos últimos séculos tem sido a dos grupos dominantes do poder, quando trazemos à cena uma personagem principal de uma história da escravidão negra no Piauí, estamos afirmando, num ato concreto de resistência e de negação à história dita oficial, que temos muito a compor na colcha de retalhos que constitui a história dessa nação.

Nosso encontro com Esperança ocorreu com a juntada de documentos que registra um pouco da sua história , são estes: uma Carta escrita por ela, quando Esperança estava aos 19 anos de idade, datada de 06 setembro de 1770 e um Relatório contendo a “Relação dos Escravos das Fazendas de Inspeção de Nossa Senhora de Nazareth, de 1778”, conforme imagens abaixo.

Seguimos então a trajetória de Esperança. As fontes nos revelam que em 1751, havia a Fazenda Algodões, de propriedade dos jesuítas, que fica a cerca de 300 km de Teresina, atual capital do Piauí; juntamente a outras dezenas de estâncias, e pertencia à Inspeção de Nazaré, onde é hoje o município de Nazaré do Piauí, localizado no Sudoeste do Estado. De acordo com apontamentos históricos, Nazaré e Algodões advém dos movimentos migratórios da Casa da Torre, da Bahia, sob o comando de Garcia D’Ávila, a partir da segunda metade do setecentos.

A pequena menina negra nasce nessas terras, de pais que as fontes não nos revelaram, e recebera o nome de Esperança. Nos arriscamos a supor que ela pode ter nascido no dia 26 de abril, por ser este, o dia de Nossa Senhora da Esperança [3], que, conforme o Pe. Roque Vicente Beraldi (2012), chega ao Brasil com a caravana de Pedro Álvares Cabral e, por aqui fica até 1955, quando volta para Portugal, considerando a forte presença dos padres jesuítas no Piauí, especialmente na região de Nazareth, onde nascera Esperança.

Além do mais, na Residência de Nazaré, além da casa de moradia e currais, havia uma capela “e seus pertences”. Os padres da Companhia de Jesus tinham forte relação com a estrutura econômica e dinâmica do período colonial, e segundo Ana Stela Negreiros [4], eles vendiam e compravam gado, arrendavam sítios e vendiam e compravam outras. Desse modo, sugerimos que 25 de abril de 1751, seja o dia de nascimento de Esperança que ganha este nome em homenagem a Nossa Senhora da Esperança e, Garcia era o nome do seu proprietário, Garcia D’Ávila.

Não se tem notícias dos seus pais ou outros parentes, a não ser os filhos relatados na carta. Sabe-se que ela era crioula, nasceu em terras brasileiras, na província do Piauí, no Nordeste do Brasil. Só sabemos que, em 1770, aos 19 anos de idade, mãe, mulher negra e valente, Ela, Esperança, grita para o mundo que chega! Eu não sou saco de pancada! Parem de me violentar! Foi assim que conhecemos Esperança, nome que traz como significado, “ter esperança e acreditar que alguma coisa muito desejada vai acontecer”.

A narrativa sobre Esperança poderia seguir, pois as memórias de mulheres negras como Ela e tantas outras, vivente do seu tempo, abriram brechas e fortaleceram laços, fazendo-se memória de resistência e luta para gerações futuras em suas experiências como trabalhadoras escravizadas e libertas, ou mesmo as do tempo presente, nos espaços públicos e privados nos quais fincaram suas presenças e (re)invenções culturais. Sua trajetória como ex-escravizada continua sendo relembrada, inclusive, em decorrência de sua resistência e de sua coragem, fatores que a mantém viva na memória cotidiana.

 

Este artigo compõe a Ocupação da Rede de HistoriadorXs NegrXs em veículos de comunicação de todo o Brasil neste 20 de novembro de 2021.

Autores:

(Foto: arquivo pessoal)

 

 

Profa. Dra. Iraneide Soares da Silva – UESPI.

Contato:
iranegra@gmail.com

 

(Foto: arquivo pessoal)

 

 

Profa. Me. Juliana Alves de Sousa – UNILA.

Contato:
juhistorias@yahoo.com

 

(Foto: arquivo pessoal)

 

 

Prof. Me. Cláudio Rodrigues de Melo – UESPI.

Contato:
Claudiomelo01@hotmail.com

 


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